Quando me refiro á minha mãe, refiro-me á minha Tia, a pessoa que me criou desde os 6 meses. Irmã do meu pai e também minha madrinha.
Afinal mãe é quem nos cria por isso tive a sorte de a ter tido, na ausência de uma mãe biológica, uma mãe que fez tudo o que estava ao seu dispor para me dar uma vida feliz.
Fui a segunda filha que ela não pôde ter e de alguma forma sinto que nasci para ser filha dela e acompanha-la na sua jornada de vida, muito mais do que estar presente na vida do meu pai ou na vida da minha mãe biológica.
Quase como se eu fosse um karma para estas três pessoas, mas nem todas estiveram disponíveis para aprender com ele e progredir.
Mas a minha mãe, a minha Tia, ela teve coragem de me acolher e deu o seu melhor.
Claro que nem tudo foi um mar de rosas.
Houve tempos bem difíceis.
Quando fui acolhida pela minha mãe, ela era casada com o meu Tio Zé (era assim que o chamava), e tinham uma filha já com 13 anos, a quem chamo desde sempre de irmã, e não poderia ter melhor irmã neste mundo, sempre esteve lá para mim, sempre.
Na minha família, apesar de esta ser muito pequena, sempre existiram bastante atritos com o meu Pai. Porque sempre foi egoísta, sempre fez o que queria e bem lhe apetecia e nunca ninguém teve a coragem de lhe dar o que ele merecia, ou pelo menos lhe responder á letra. Os meus avós sempre lhe deram tudo desde sempre e mesmo em adulto era vergonhoso um homem com mais de 40 anos ser levado ao colo pelos pais, receber dinheiros dos pais, eles apenas com reformas, e ele como advogado, bancário e em cargos políticos. Ou seja, vivia acima das suas possibilidades, e em vez de se orientar pedia ajudas em demasia a pessoas já reformadas mas que não tinham coragem de não lhe dar. Claro que, como resposta a estes mimos em demasia, nunca aprendeu e hoje, com mais de 60 anos continua a ser uma pessoa que, para mim, é tóxica e só estou na presença dele em ocasiões como o Natal ou Páscoa. Tirando isso é uma mensagem de Parabéns e pouco mais.
Mas, passando á frente.
No meio dos atritos familiares, o meu Tio nunca suportou o meu Pai por todas as razões válidas. Ele sempre lutou muito para ter a sua casa e bens, tentava ajudar os pais já velhotes, tudo ao contrário do meu Pai.
Quando a minha mãe me acolheu ele inicialmente não me aceitou, por me associar ao meu Pai.
Mas rapidamente se converteu a um bebé sem culpa dos pais que tinha e foi como um Pai para mim.
Ele sempre quis ter filhos homens e nunca teve, então, como eu era meia Maria-Rapaz ele levava-me para todo o lado, até para a pesca.
Ele e a minha mãe não tinham muitas posses, mas deram-me tudo o que precisei, nunca me faltou nada.
Era ao meu Tio que contava as minhas notas na escola e ele, sem muito jeito para demonstrar, ficava muito orgulho e dizia “muito bem”. E sorria, e os olhos brilhavam.
Era o suficiente, o amor dele sentia-se, apesar da sua falta de jeito.
Nunca questionei nem nunca me senti desprezada por ele, muito pelo contrário.
Até de alguma sentia que ele me dava mais atenção do que alguma vez deu á própria filha, não por não gostar, mas por falta de á vontade para com as emoções.
O meu Tio Zé tentou proteger-me sempre do meu Pai, quando o meu pai vinha armado em mandão com coisas que nada interessavam, apenas para descarregar em cima de mim. E claro que, os atritos na família sempre estiveram acesos, porque o meu pai assim provocava.
Quando eu tinha 14,15 anos muita coisa começou a mudar.
A minha mãe sempre foi uma pessoa muito temperamental, impulsiva, e sempre fez birras por tudo e por nada. Lembro-me dela ora estar bem ora estar mal. Seja comigo, com o meu Tio, até com a minha avó, mãe dela.
Quase como se dependesse da lua ou da maré, simplesmente parecia bipolar.
Quando estava bem tudo estava bem, quando estava mal, o ambiente ficava de cortar á faca.
E nesta altura ela deve ter entrado na menopausa então tudo começou a correr ainda pior.
Em casa começou a haver discussões ainda mais frequentes, diárias.
A relação entre a minha mãe e o meu Tio nunca foi muito boa, pelo menos as recordações boas são meramente em convívios, entre eles nunca vi afeto ou bom relacionamento, mas também nunca me meti.
Quando o ambiente começou a ficar pior, comecei a cada vez mais estar fora de casa para não ter de lidar com eles.
Aos 15 anos, a minha mãe começou a ajudar um senhor meio invisual que morava relativamente perto de nós. Começou a ajudar na lida da casa, era um extra que ela dizia que dava jeito.
Este senhor tinha acabado de ficar sem a mãe dele, que era a única pessoa que tinha e claro que, deu pena.
Ele estava reformado por invalidez, porque a percentagem de visão era mínima.
Andou numa escola de invisuais para aprender como andar de bengala e conseguia andar na rua com algum cuidado e bastantes limitações.
Não poderia ser melhor situação para a minha mãe avançar e querer salvar o mundo.
A minha mãe apesar de toda a sua confusão emocional, sempre tentou ajudar tudo e todos. Se se sentisse útil, os amuos e problemas que lhe passavam pela cabaça, passavam. Talvez fosse o que precisava para se sentir bem, era poder ajudar, sentir-se útil. Talvez porque nunca se tenha valorizado.
Ela começou a trabalhar na casa deste senhor. Como a casa dele era a 5 minutos da minha, ela começou a passar muito mas mesmo muito tempo fora, chegava a casa muitas vezes já bem de noite.
Claro que, não é uma situação normal, pelo menos para mim nunca foi.
Ela começou a arranjar o jantar, deixava-o em cima do fogão e depois pedia-me para eu servir ao meu Tio, quando jantasse com ele.
No início não vi razão para não o fazer, mas com o passar das semanas e meses, o meu Tio começou a fazer perguntas e a desconfiar de uma situação menos própria. E começou a sobrar para mim.
Apesar de ele ter sido muito bom para mim, era um pouco bruto e impulsivo também.
E começava a mandar vir com a situação, e a mandar com as coisas e aquilo causava-me demasiado stress.
Chegou a um ponto de eu falar com a minha mãe e dizer-lhe para ela se desenrascar, não ia continuar a tapar buracos.
Deixei de fazer companhia ao meu Tio para jantar e comecei a passar muito tempo fora de casa, ficava em casa de amigas ou assim até á hora de poder chegar a casa e ir logo para o quarto.
O tempo foi passando e o ambiente continuou infernal.
Claro que fui confrontando a minha mãe com as ausências mas ela não queria saber.
Começou a passar fins-de-semana fora.
E isto... foi só confirmar o óbvio.
Este senhor a quem inicialmente começou a ajudar chamava-se Luís.
Ele tinha uma casa em Sesimbra e ela dizia que ia com ele aos fins-se-semana para supostamente o ajudar com a casa de Sesimbra.
Poderia até ser, mas não da forma como ela estava a fazer as coisas.
Já não era nenhuma criança, muito menos o marido dela.
Os meus avós, a minha irmã, todos perceberam o que se passava.
Um dia, estava eu em casa ao fim da tarde de um dia de semana, e fui á varanda nem sei porque motivo. E vi-a á porta do prédio com o Luís. A forma como estavam os dois não era de todo muito católica.
Ao ver aquela situação fiquei em pânico.
O meu Tio deveria estar a chegar a casa.
Foi horrível.
Num bairro familiar, no centro de Lisboa, onde os meus avós vivem no prédio ao lado, toda a gente se conhece, isto era uma situação completamente lamentável e desnecessária.
Mas o que é que ela estava a fazer?
Que falta de respeito.
Isto marcou-me da pior forma possível.
O meu Tio chegou a casa pouco depois de eu ter visto a situação.
E claro, vinha transtornado.
Vinha a mandar vir, e com razão.
O ambiente começou a ficar insuportável e comecei a passar os fins-de-semana com a minha irmã para conseguir descansar.
A minha mãe começou a dormir na sala e as ausência começaram ainda a ser maiores.
O divórcio aconteceu 2 anos depois, por isso foram 2 anos de muito stress.
Ao fim dos 2 anos fui arrastada por ela para casa deste Luís, tinha 17 anos.
E nunca mais vi o meu Tio.
Apesar de não concordar com nada, acabei por levar por tabela, como se eu tivesse a apoiar a atitude da minha mãe, mas não. Eu era dependente dela, visto estar a cargo dela.
Tinha vergonha, muita vergonha por tudo o que ela andava a fazer.
O Luís, vivia num T1 que era perfeitamente suficiente para ele, mas para 3 pessoas, este T1 era mesmo muito pequeno.
A opção seria eu dormir na sala.
E, apesar do Luís achar melhor arranjarmos uma casa maior, a minha mãe disse que não fazia mal, que eu me “desenrascava”.
Então dividimos a sala em 2, com uma porta de fole.
De um lado ficou uma mini sala, e do outro um mini-quarto.
Desenhei uma mobília com cama, armário e secretária, e pedimos para fazer á medida, de outra forma era impossível ter espaço para tudo. E assim foi.
Quanto á porta de fole, não era todo uma má opção, mas seja o barulho e falta de privacidade foram pontos que me foram muito difíceis de habituar.
De repente deixei de ter um quarto, e logo aos 17.
De manhã, mesmo ao fim-de-semana, antes das 8h já havia música na sala, e bem alta.
Claro, o Luís, uma pessoa que não estava habituado a conviver com outras pessoas, e nunca tinha vivido com ninguém estava a fazer a sua vida normal sem sequer pensar nos outros.
Ele embirrava mesmo comigo.
Assim que a minha mãe saía de manhã para trabalhar, ele começava imediatamente a fazer barulho, e até abria a porta de fole, dizia que a casa tinha de arejar.
Passava-me completamente.
Falava com a minha mãe e ela falava com ele mas tudo continuava.
Havia situações em que tinha a certeza que era implicação dele.
Dizia-lhe que ia ter um exame por exemplo ás 10h, que tinha de sair de casa ás 9h. E ele fazia sala no WC durante horas para que eu não conseguisse me despachar a horas. Chegou a colocar coisas minhas dentro da banheira com água.
Houve situações que chegaram mesmo a provocar atrasos em exames. Noites em que fazia diretas a estudar e que depois não conseguia nem dormir 1 hora. Levou-me á exaustão.
Ele mal tinha visão, e dava desculpas, mas sabemos perfeitamente o que é uma desculpa ou não.
Era como se ele tivesse a disputar a minha mãe comigo.
Não fazia sentido.
Foram tempos de mau ambiente, mas á medida que fui crescendo fui também aprendendo a lidar com ele. Percebi que o falar com a minha mãe era pior. E percebi que a chave para nos darmos melhor, tinha apenas a ver connosco e tinha de deixar a minha mãe de fora, pois também não confiava no que ela falava com ele.
Melhorou tudo gradualmente.
A minha mãe entretanto reformou-se e eles começaram a passar grande parte do tempo em Sesimbra, por isso comecei desde cedo a ficar sozinha em casa, meses, devia ter cerca de 19 anos.
Com esta idade já trabalhava e conseguia sustentar-me sozinha, aliás já o fazia desde o momento em que fui trabalhar aos 18 anos.
O tempo que foram passando em Sesimbra foi cada vez maior e uns anos mais tarde, já era muito raro irem a Lisboa, e foi numa altura em que as rendas levaram um ajuste.
A renda que este T1 tinha em Lisboa, eram cerca de 150€ porque era uma renda antiga e na altura foi atualizada para 350€.
Quando isto aconteceu, tinha eu 26 anos.
A minha mãe foi a Lisboa e disse-me que ia entregar a casa ao senhorio. Fez-me um ultimato: ou eu ia com ela para Sesimbra ou passavam a casa para mim.
Na altura estava a trabalhar e estava no último ano da Universidade, que era privada mas que eu conseguia pagar uma vez que não tinha despesas.
Na altura recebia cerca de 650€ e a Universidade eram quase 400€. Era impossível continuar a estudar mas não tinha hipóteses, tinha de optar.
Viver em Sesimbra na altura pareceu-me impossível, entrava no trabalho antes das 8h da manhã e as aulas acabavam muitas vezes depois das 23h. Por outro lado já não me imaginava a viver com a minha mãe.
Não tive muito tempo para pensar e decidi ficar com a casa até arranjar uma solução melhor.
E assim foi, passaram-me a casa.
Mas não totalmente.
Então a ideia da minha mãe era eu pagar a casa, mas manterem o nome deles no contrato.
Não me opus, porque sabia que se não fosse assim, o valor ainda ia ser superior ao dos 350€, por isso aceitei.
Fiquei com a casa para mim e eles foram de vez para Sesimbra, e levaram os seus pertences todos, com exceção da mobília do quarto, que não lhes fazia falta e a mim dava-me jeito.
E, rapidamente coloquei a casa a meu gosto, comprei sofás, tudo o que me fazia sentido.
Passado um mês, já tinha a casa composta e tinha combinado um jantar de amigos em casa para comemorar o novo começo.
No dia do jantar, 6ªfeira a minha mãe liga-me a dizer que estão a ir para casa.
Ao que eu, incrédula, respondo que não, que aquela já não era a casa dela.
Foi uma discussão bastante agressiva, mas consegui colocá-la no lugar.
Disse que não a deixava entrar, e se quisesse vir á minha casa, tinha de avisar com antecedência e tinha de vir durante o dia porque não tinha sítio para eles dormirem.
Tentou medir forças comigo e eu tranquei a casa, ela teve de voltar para Sesimbra.
Foi um momento muito feio, mas na altura percebi perfeitamente a jogada dela.
E o pior... era a minha mãe.
Já não me bastava o meu pai, a minha mãe, estava a usar-me ou pelo menos a tentar.
Quando me dei conta do filme todo fiquei muito desiludida.
Ela não queria gastar dinheiro com a casa, tudo bem, mas tinha sido honesta.
Não pensou sequer que eu tinha de deixar de estudar para ficar com um teto para mim.
Ou seria tudo chantagem para que eu fosse com ela para Sesimbra?
Consegui passar 2 anos de paz nesta casa, no centro de Lisboa.
Mas ao fim de 2 anos a minha mãe, até hoje não sei o que lhe passou pela cabeça, num dia em que foi a Lisboa, conversar com uma das minhas vizinhas do prédio com quem eu me dava muito bem, passou-se arranjou uma discussão tal, que só sei que tive de deixar a casa em 2 meses.
Sempre tive uma relação muito boa com esta vizinha e ela também, já se conheciam fazia muito tempo. Esta vizinha era também amiga do senhorio.
Ainda hoje não sei o que se passou, só sei que me deram 2 meses.
Recordo-me de estar na minha sala com o Luís e a minha mãe.
O Luís teve a primeira grande atitude para comigo, e até hoje não esqueço.
Ele disse-me" não vou sair daqui enquanto não garantir que tens um teto ou tens onde ficar”.
Ele com o tempo começou a conhecer mais e melhor a minha mãe e percebeu que ela, apesar de ajudar muito as pessoas, também joga com elas.
A minha mãe perdeu a cabeça, armou confusão e sobrou para mim, mais uma vez.
Estava fora de questão ir viver com ela.
Mesmo na altura podia ir para Sesimbra e até adorava, mas viver com ela já não era uma alternativa.
Falei com amigos e fui alugar casa a meias com um amigo de infância.
Em vez dos meses, saí de casa em 15 dias.
Só queria era fugir dali e deixar de ter qualquer tipo de dependência com a minha família.
Seja mãe, seja pai.
Todos eles de alguma forma se aproveitaram de mim por isso preferia dividir casa, confiar nos meus amigos, mais do que na minha família.
Se não tivesse sido o sentimento de gratidão que sempre tive para com ela, talvez tivesse cortado relações com ela.
Ainda hoje não percebi que discussão ou problema que ela arranjou com a vizinha que me fez ter de abandonar a casa.
A verdade é que ela teve praticamente 2 anos sem voltar a casa, no dia em que volta, arranjar esta situação.
Fui dividir casa com o tal amigo de infância que se chama David.
Não me arrependo nem por 1 minuto, foi sem dúvida a melhor decisão que tomei.
E tive 2 anos a dividir casa e foi um período muito tranquilo da minha vida.
Apenas saí quando fui estudar novamente, por motivos de dinheiro.
E voltei-me a enfiar num buraco, que foi viver com o meu pai durante 2 anos.
Não me vou alongar muito, apenas posso dizer que ao fim de 1 ano o meu pai começa-me a cobrar despesas (uma pessoa que me roubou a conta bancária e nunca meu deu 1€). Assim que apareceu o covid, coloca-me fora de casa, e dá-me os meus pertences pela janela.
Passo 2 anos a viver com o meu namorado da altura. Ao fim de 2 anos, ainda antes de me separar dele, ele começa a ameaçar-me colocar-me na rua.
Bom, é quase um padrão.
Todos aqueles em quem eu confiei, tiraram-me o tapete.
Se tiver de ter 2 ou 3 trabalhos terei, se tiver de alugar um quarto não me importo. Mas nunca mais volto a ter dependências relativamente a família ou namorados.
Jamais.
Hoje em dia tenho uma boa relação com a minha mãe.
Mas só foi possível depois de tomar uma atitude diferente.
Em 2020 confrontei-a com tudo, não em discussão, mas com uma conversa séria. Era importante ela perceber o filme todo, o que ela realmente fez, apesar de poder não ter dado conta.
Inicialmente correu mal, ela virou-se contra mim e eu deixei de lhe atender o telefone e de lhe ligar e deixei passar um ano.
Só queria que ela refletisse sobre o que aconteceu.
De forma alguma a queria castigar, queria era começar de novo.
Já não conseguia lidar mais com ela com tanto por dizer.
Conseguimos conversar a sério.
Ela chorou muito, vi que lhe custou muito ter consciência das suas atitudes.
Mas teve, era isso que precisava. Porque não sou ninguém para a castigar nem o ia fazer. Acredito que melhoramos quando temos consciência dos nossos atos e assim foi.
Só queria que ela percebesse, para podermos recomeçar e nos darmos bem.
E Correu bem.
Nos dias de hoje, não consigo ouvir nem discussões nem gritos.
O silêncio para mim é tudo.
Se ouvir alguém a bater com portas fico stressada.
Foram tudo aprendizagens difíceis mas em todas elas houve solução.
Todas.
Mas foi necessário trabalhar muito a paciência, ter amor-próprio e pensar positivo.
Ou melhor, nem olhar para trás.